Uma linha de luz arqueada
Flutua suspensa
Na extensão do braço, onde a força
Abandona o corpo
O grito de vidro soprado vazio
Impera calado
Quando o silêncio reflecte a voz
Da sombra quebrada
Por passos
Que se afastam e convergem
Ao ponto onde a tristeza absorvida
É libertada
No instinto irracional e separador
De um adeus.
...Guardo nos olhos o que me mostraste com a clareza dos teus, a beleza dos dias, depois, a tranquilidade das noites e esta sucessão como único milagre da existência do tempo e como ordem real da natureza e dos homens...
Alguém inventou a luz
No início não havia o
nada
Estava lá tudo
O verbo
O fogo, o ar, a água e
a terra
Até os homens
Havia silêncio
E o verbo era respeito
Escuridão
E os homens eram um só
De mãos dadas
Para não caírem no tudo
Depois alguém inventou
a luz
E acendeu-a
Sobre todas as coisas
Sobre todos os seres
Até sobre os homens
Então os homens puderam
ver o horizonte
Abraçaram o desejo de
tudo
E afastaram-se do mundo
Transformaram o fogo
O ar, a água e a terra
Até outros homens
Em verbo maltratado
E o nada nasceu
No coração dos homens.
Um lugar melhor
Do lugar de onde vim, o tempo afastou-me
da morte
No passado não posso morrer.
Os que para trás ficaram
Os que apenas me olharam e nunca me sentiram
Os que apenas me olharam e nunca me sentiram
Podem pensar o infinito sobre quem fui e aquilo que dei
Ainda que presos à dúvida se terei mesmo existido
E se a memória que de mim guardam é real.
Calmaria
Dos teus brilhos, caminho
meu
Podia dizer, se o
sentisse
Que são jardins feitos
de sol
Ou ondas em verde manto
que o vento afaga
Podia perder-me, se
quisesse
Nas formas distantes do
tempo
E dar-me todo,
tempestade
Mas os teus brilhos,
olhos meus
São causas e efeitos, são calmaria
Por eles o tempo pára,
eu bem sabia
São a pedra onde me
sento
E turbilhão, sou tudo o
que me devo
É nos teus brilhos que
me perco
No simples olhar para uma
flor
E não desejo, sequer
procuro outro caminho
Deixo-me estar assim quieto
Até que a flor seja caminho
e seja brilho
Até que seja, por fim, beleza
E inteira, tome conta
da paisagem
E tome a paisagem, conta de mim.
Cada noite é um poço onde o dia vai matar a sede
No campo o dia é quente
E quente, trago a alma
à realidade dos factos
O corpo, amarrotado de
dormir, fica pendurado no roupeiro
Cada noite é um poço
onde o dia vai matar a sede
No quarto a noite é
fria
E frio, visto o corpo à
imaginação do sono
Enquanto a alma vai
fazer castelos na praia dos sonhos.
No tecto da imaginação
faltam telhas à realidade
O céu, azul durante o dia
ou constelado de noite
É oferta da alma
para um corpo cansado de existir
E tudo é sonho na
realidade que a vida veste
Quando se acorda para
morrer.
No campo os dias são
quentes
E frias, são as noites
no meu quarto.
Poema que só quer ser
O poema não quer saber
da poesia para nada
Nem do poeta que o
escreve
Assim que nasce
emancipa-se, corta os laços da filiação
E tenta encontrar um
lugar no mundo
Visibilidade, espaço,
com sorte, fama
O poeta erra ao querer
defender o poema
Ao tomar-lhe as dores
Ao querer tutela-lo até ao
último dia que vive
E depois, quando morre
O poeta espera que o
poema lhe vá levar flores à campa
E que não deixe
esquecerem-lhe o nome
O poeta erra por
pretensão
Porque quer brilhar
mais que o poema
Mas o poema, órfão por
opção, não se importa
Pois sabe que não está
nas mãos do poeta
Ser adoptado pelo mundo
ou não.
O vestido branco e dourado
Anda por ai um vestido
branco e dourado
Que alguns juram, pelo
deus dos vestidos, ser preto e azul
E foi um caso que gerou
grande falatório
Foi exaustivamente
estudado por doutores da saúde dos olhos
E por cientistas da
ciência das cores
E tiveram que parar
muitas guerras
E muita gente ficou por
morrer
Para apurar quem tinha
razão
O que me importa é que
o dito vestido
Assenta bem a quem o
veste
E não pensei mais sobre
isso
Porque isto de ver com
os olhos
Cada um vê a cor que
consegue
Dizem que é genético e
que depende do ângulo de luz
Ainda hoje choveu outra
vez
E já há uns dias que
não chovia por estes lados
Já andavam pessoas à
fresca com a pele ao sol
E sempre que está sol
A vida fica mais leve
Sem ângulos suspeitos e
sem cores duvidosas
Com um pouco mais de
luz sobre todos os despidos
Sem genética.
O tempo faz destas coisas à vida
"Há já muito tempo que
não escrevo um poema"
E não me tem feito
falta alguma
Tenho acumulado, neste
bloqueio de estro, dias vazios
Leveza nos ossos,
espasmos no tempo e folhas em branco
E já são tantas
Que podiam causar-me
diferença
Nos braços cruzados sobre a
barriga à míngua de letras
Ou na fome de as
escrever
Sobre qualquer coisa
muito açucarada.
Quando o tédio da vida
corre diabético nas veias
O melhor é não escrever
indigestões
E adoptar uma dieta de
versos.
"Há já muito tempo que
não escrevo um poema"
Tenho acumulado folhas
em branco
E dias vazios,
imaculados
E são tantos
Que se os escrevesse agora,
já fora de prazo
Tinha de joga-los no
lixo com as letras amarrotadas
Impróprios ao consumo
de quem têm muito apetite.
O tempo faz destas
coisas à vida e ao poema também.
Isto não é uma despedida qualquer
Doeram-me mais
tristezas
Do que dias tristes que
tive
Doeram-me todos os dias
E todos os que tive, foram
felizes.
Isto de ser feliz é um
processo complicado e lento
A vida deve ser
entendida como parte inteira da dor
Não existe dor sem vida
E do mesmo modo, não
existe vida sem dor
E aceitar este facto é
querer ser feliz.
…
Tenho visto muito
Aprendido mais
Tenho aceitado tudo
Quando faz calor,
ponho-me ao sol e sabe-me bem
E penso, que a vida não é uma despedida qualquer.
Ontem ao contemplar o céu
Passou um pombo cinzento a voar
Passou um pombo cinzento a voar
Foi pousar no galho
mais alto da árvore mais alta que havia no monte
E esta imagem tem mais
valor do que aquilo que tentei aqui dizer.
Tudo na vida, assim
como a vida, é sempre metade de algo...
Só me falta morrer para
ser completo.
Ser grande é não ter tamanho
As pessoas podiam ser
grandes
Deviam ser, sem
reservas, maiores do que o corpo que vestem
As pessoas deviam ser
grandes
E ser grande é não ter
tamanho.
As pessoas compram
casas grandes, paredes meias com o corpo
Para mostrarem que o
seu corpo é grande
E pensam que isso é
importante
Mas somos todos
pequenos por fora
E o tamanho que as
pessoas pensam que têm
É só o tamanho das
coisas que mostram
E coisas assim têm a alma
pequena.
As pessoas compram
casas grandes
Porque não sabem, que
são maiores que as casas que compram.
As pessoas podiam ser
grandes
E ser grande, é não ter
tamanho por dentro.
A segunda coisa mais estúpida do mundo
A segunda coisa mais estúpida do
mundo é discutir com alguém por assuntos ou temas nos quais não acreditamos,
além de ser uma tremenda perda de energia, reduz, ao tempo de vida útil no
mundo de ambos os intervenientes, o tempo gasto na discussão, o que torna a
segunda coisa mais estúpida do mundo, na coisa mais inútil do mundo.
Para que conste, a coisa mais
estúpida do mundo, é o pensamento. Foi o pensamento, a coisa mais estúpida do
mundo, que me levou à segunda coisa mais estúpida do mundo, a ideia exposta neste
texto, que por sua vez, é a coisa mais inútil do mundo. O que me leva a pensar
que estou a perder o meu tempo a escrever esta nota, também ela estúpida e
inútil.
A coisa mais estúpida do mundo
A verdade, é que às vezes pela
simples razão de dizer o que penso, sinto-me a pessoa mais estúpida do mundo.
Por causa disto, outras vezes não o digo e, ao fazê-lo, sinto-me a pessoa mais
estúpida do mundo, o que também é verdadeiro. De qualquer modo e para o efeito,
é como se pensar e o simples processo de fazê-lo, fosse a coisa mais estúpida
do mundo. Por esta razão, a de me sentir a pessoa mais estúpida do mundo, é que
insisto na estupidez de continuar a pensar, e isto é simples e verdadeiro.
Metamorfose
É o meu pensamento que
cria e oferece sentido aos dias.
Isto pode parecer uma
ideia irracional e tola
Mas ao dia, sucede a noite e à noite, um novo dia
E esta sucessão serve-me como prova, ainda que relativa.
E esta sucessão serve-me como prova, ainda que relativa.
Criei tudo o que foi criado e visto no mundo
E já imaginei tudo que ainda não se realizou
Se existe terra e mar, por exemplo
É porque moldei a terra e o mar em toda a extensão da mente
Sem nunca ter pisado nela, sem nunca me ter molhado nele
Sem nunca ter pisado nela, sem nunca me ter molhado nele
E nada ficou ao acaso, nada foi desconsiderado
Pois sou deus, pensamento, senhor das limitações materiais.
O meu universo é uma
totalidade cósmica acidental
Onde criei um mundo
para morar igual à minha casa corpo
Porque o meu corpo é a
minha casa
E nele existem pessoas que são pessoas crianças
Mágicas e
eternas
Que conservam o dom da
criação e imaginam mundos
Criativos e únicos como elas o são.
É a minha vida que dá vida
ao mundo
Cada vez que abro os
olhos
A vida transcende-me e
permeia todos os mundos
Todas as pessoas
Todas as pessoas
Tornando-me o deus das nossas limitações terrenas.
Metamorfose
Agora pensamento
Agora pensamento
Depois, existência.
Celebração
Existem dias que se colam à sola do
sapato como merda de cão
Por mais que raspe com o pé no
passeio
Que esfregue energicamente com a sola
na relva do jardim do vizinho
O cheiro da merda paira onde quer que
meta o nariz
Existem noites que parem o mesmo dia
durante muitos dias.
Chuva de pedra e frio de gelo nos
olhos defuntos
Vento nortada de passos sem norte que
vêm para sul
Celebrar a festa dos mortos no dia do
meu aniversário
Mesa posta, velas acesas e as
cadeiras todas vazias
Só compareceu quem foi convidado, o
único penetra, sou eu.
Existem dias que têm de ser
celebrados todas as noites.
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