O pensamento maltrata o poema

O pensamento maltrata o poema
Tortura a palavra
Intelectualiza, à força, a ideia
Que era simples e pura
Formosa e sem forma
Tornando-a mecânica e dura

[Estende-se com lógica pela linha do verso
E mata a rima]

Então, o poema mente, por vezes
Outras, assume o pecado
Mas nunca se rende
Nunca recua na folha vazia
E no fim, aos olhos de todos
Depõe feito réu
E é declarado culpado. 

Casca de noz

Se soubesse escrever melhor os meus pensamentos
Se conseguisse traduzi-los em palavras
Acompanha-los sem entretanto perdê-los
Escreveria mais e certamente melhores poemas

Injustamente para a realidade do poema
Este conhece-me apenas da noz, a casca rude e dura
E quanto ao miolo do fruto, rico, nutrido
Fica todo para meu proveito
Só eu posso aprecia-lo, em puro acto egoísta 
Contemplar-lhe a forma, tocar-lhe a textura
Só eu posso imaginar-lhe o gosto antes de trazê-lo à boca
E nesta realidade minha faz-se justiça ao poema
Pois ao preparar-me para comer o fruto, deixo caí-lo no chão
Perdendo-o irremediavelmente
Para o imenso abismo que separa
O pensamento de qualquer acção

Se soubesse escrever melhor
Se conseguisse acompanhar os meus pensamentos
Traria à realidade do poema
Todo o espanto que neles e em mim habita. 

Sempre que penso

Sempre que penso pensar em mim
Construo uma casa grande para lá morar
Cheia de coisas belas e móveis castanhos envernizados
Que falta me fazem quando me penso pensamento

No fim, quando lhe ponho as cortinas nas janelas
Uma carpete com motivos no chão da sala
Quando torno a casa confortável e acolhedora
Não me vem vontade de morar nela.

Eu, que de real sou apenas hipótese
Antecâmara perceptiva e abstracta
Onde me gero esboço robusto, pau para qualquer obra pensada
E, se a vertente pender à duvida
Viverei o que vivo ou vivo o que irei viver?
Estudo-me, analiso-me e antecipo o momento, todos eles

Mas, o pensamento cansa-me de tanto o pensar cansado
Cansado da casa e dos acabamentos cuidados
Cansado da importância dos pormenores
Cansado de lhe dar liberdade, aprisionando-me pensamento
Então, o tamanho da casa grande torna-se pequeno
E o motivo da carpete deixa de ter um motivo.

O pensamento acabado e final, é cansaço e prisão
É a casa onde me ponho à janela a ver-me aqui
E aborrecido, perco a vontade de morar nela.

Paisagem

Amanhece o dia calmo e a calma em mim
O sol nasce e cai desfeito na encosta
Os ramos das árvores fingem um movimento artístico e suave
Acho que estão a fazer vontade ao vento
E a pôr sombras no chão e isto fica-lhes bem

Já o manto é verde e o verde do manto de vários verdes
E vejo-os a todos como um só manto
E tudo na paisagem se compõe em equilíbrio
Tudo na natureza se compõe e tudo se equilibra
E podia ser puro até
Se eu não estivesse aqui, também a fazer paisagem.