Caravelas azuis céu adentro

Desconheço as certezas que me atraem ao desconhecido.
Um movimento causa efeito no brilho desta dúvida circular
Não tenho esperança de me encontrar nas perguntas que guardo
E guardo-as religiosamente como segredos esquecidos no tempo.

Desacreditei teorias sobre a dor sem ter sofrido.
Vou em procissão levar toalhas quentes à angústia que me consome
E pelo caminho, idealizar a morte por baixo da terra
Por não acompanhar a gravidez das estrelas todos os dias 
Nem assistir ao seu parto anunciado com ardor fora dos olhos.

Esqueci-me de acreditar

Caravelas azuis céu adentro por dois mil anos
Tenho esperado o meu nascer para começar.
Na origem a indiferença onde me guardo sem ambições
Cai o lorpa na arcada por um abraço que ninguém me deu
Cresci e morei sempre à porta sem entrar
Com medo de pisar o mesmo chão, conhecer o padrão e ficar

Esqueçam-me todos, todos os dias em que não voltei
Esqueçam-me os lamentos e as ilusões que emprestei ao mundo
E afastem-me de vez quando chegar a falar de amor.
Esqueci-me de acreditar

Caravelas azuis céu adentro por dois mil anos
Elevam-se adagas e escudos pela morte de um imperador.
Desenhei um rio com margens e com corrente
Porque só quero uma vista para o Nilo, na tarde da minha derrota.

Qualquer coisa sem propósito

A rua desce estreita até ao fundo do meu cansaço.
Vai-se estreitando para o fim, como qualquer coisa sem propósito
Que estranhamente, de todas as vezes que passei por ela
Nunca consegui explicar.

Nunca houve outra rua mais verdadeira e minha
Do que aquela que me sentiu os passos todos os dias
E da mesma maneira, nunca houve desses dias, somente um
Em que ela soubesse quem eu era e me conhecesse por andar nela.

É a rua onde cresci e me vi passar por mim
Ao perto e ao longe
E me deixou marcas na pele e na alma
Por cair nela muitas vezes. 

É a rua onde andei como desalmado com camisa bem passada
Como inconsciente com sapatos novos a pisar em tudo
Onde andei vestido de mim, como pessoa inteligente sem futuro
E hoje, é a rua que se inclina para falar de tempo e de espaço
Sem falar do que sou, sem marca nem memória que de mim lembre.
Corrida até ao jardim sem respirar
Ir e voltar a deixar marcas pelo passeio e entrar em casa.
Universos percorridos até à extinção da vontade de ir
Ficar exausto, deitar-me na cama e saber que vivi

Se conhecesse, não tinha ido
Se recordasse, não tinha voltado
Por isso fui e voltei muitas vezes, não para conhecer nem para recordar
[mas para me cansar e viver.
Chegar ao fim da rua sem saber a cor das paredes das casas
Por nunca ter morado nelas
E aceitar isto como desleixo de passar desinteressado por tudo e por todos
Enquanto a rua desce e estreita
Enquanto se inclina até já não conseguir andar por ela.

Chegar com propósito ao fim por viver muito
Como se chega sem pressa ao fundo da rua
Lugar de espaço e de tempo onde se alarga o meu cansaço.