Cada noite é um poço onde o dia vai matar a sede

No campo o dia é quente
E quente, trago a alma à realidade dos factos
O corpo, amarrotado de dormir, fica pendurado no roupeiro

Cada noite é um poço onde o dia vai matar a sede

No quarto a noite é fria
E frio, visto o corpo à imaginação do sono
Enquanto a alma vai fazer castelos na praia dos sonhos.

No tecto da imaginação faltam telhas à realidade
O céu, azul durante o dia ou constelado de noite
É oferta da alma para um corpo cansado de existir
E tudo é sonho na realidade que a vida veste
Quando se acorda para morrer.
No campo os dias são quentes
E frias, são as noites no meu quarto.

Poema que só quer ser

O poema não quer saber da poesia para nada
Nem do poeta que o escreve
Assim que nasce emancipa-se, corta os laços da filiação
E tenta encontrar um lugar no mundo
Visibilidade, espaço, com sorte, fama

O poeta erra ao querer defender o poema
Ao tomar-lhe as dores
Ao querer tutela-lo até ao último dia que vive
E depois, quando morre
O poeta espera que o poema lhe vá levar flores à campa
E que não deixe esquecerem-lhe o nome

O poeta erra por pretensão
Porque quer brilhar mais que o poema
Mas o poema, órfão por opção, não se importa
Pois sabe que não está nas mãos do poeta
Ser adoptado pelo mundo ou não.

O vestido branco e dourado

Anda por ai um vestido branco e dourado
Que alguns juram, pelo deus dos vestidos, ser preto e azul
E foi um caso que gerou grande falatório
Foi exaustivamente estudado por doutores da saúde dos olhos
E por cientistas da ciência das cores
E tiveram que parar muitas guerras
E muita gente ficou por morrer
Para apurar quem tinha razão

O que me importa é que o dito vestido
Assenta bem a quem o veste
E não pensei mais sobre isso
Porque isto de ver com os olhos
Cada um vê a cor que consegue
Dizem que é genético e que depende do ângulo de luz

Ainda hoje choveu outra vez
E já há uns dias que não chovia por estes lados
Já andavam pessoas à fresca com a pele ao sol
E sempre que está sol
A vida fica mais leve
Sem ângulos suspeitos e sem cores duvidosas
Com um pouco mais de luz sobre todos os despidos
Sem genética.

O tempo faz destas coisas à vida

"Há já muito tempo que não escrevo um poema"
E não me tem feito falta alguma
Tenho acumulado, neste bloqueio de estro, dias vazios
Leveza nos ossos, espasmos no tempo e folhas em branco
E já são tantas
Que podiam causar-me diferença
Nos braços cruzados sobre a barriga à míngua de letras
Ou na fome de as escrever
Sobre qualquer coisa muito açucarada.

Quando o tédio da vida corre diabético nas veias
O melhor é não escrever indigestões
E adoptar uma dieta de versos.

"Há já muito tempo que não escrevo um poema"
Tenho acumulado folhas em branco
E dias vazios, imaculados
E são tantos
Que se os escrevesse agora, já fora de prazo
Tinha de joga-los no lixo com as letras amarrotadas
Impróprios ao consumo de quem têm muito apetite.
O tempo faz destas coisas à vida e ao poema também.

Isto não é uma despedida qualquer

Doeram-me mais tristezas
Do que dias tristes que tive
Doeram-me todos os dias
E todos os que tive, foram felizes.

Isto de ser feliz é um processo complicado e lento
A vida deve ser entendida como parte inteira da dor
Não existe dor sem vida
E do mesmo modo, não existe vida sem dor
E aceitar este facto é querer ser feliz.

Tenho visto muito
Aprendido mais
Tenho aceitado tudo
Quando faz calor, ponho-me ao sol e sabe-me bem
E penso, que a vida não é uma despedida qualquer.

Ontem ao contemplar o céu
Passou um pombo cinzento a voar 
Foi pousar no galho mais alto da árvore mais alta que havia no monte
E esta imagem tem mais valor do que aquilo que tentei aqui dizer.
Tudo na vida, assim como a vida, é sempre metade de algo...
Só me falta morrer para ser completo.