Qualquer coisa sem propósito

A rua desce estreita até ao fundo do meu cansaço.
Vai-se estreitando para o fim, como qualquer coisa sem propósito
Que estranhamente, de todas as vezes que passei por ela
Nunca consegui explicar.

Nunca houve outra rua mais verdadeira e minha
Do que aquela que me sentiu os passos todos os dias
E da mesma maneira, nunca houve desses dias, somente um
Em que ela soubesse quem eu era e me conhecesse por andar nela.

É a rua onde cresci e me vi passar por mim
Ao perto e ao longe
E me deixou marcas na pele e na alma
Por cair nela muitas vezes. 

É a rua onde andei como desalmado com camisa bem passada
Como inconsciente com sapatos novos a pisar em tudo
Onde andei vestido de mim, como pessoa inteligente sem futuro
E hoje, é a rua que se inclina para falar de tempo e de espaço
Sem falar do que sou, sem marca nem memória que de mim lembre.
Corrida até ao jardim sem respirar
Ir e voltar a deixar marcas pelo passeio e entrar em casa.
Universos percorridos até à extinção da vontade de ir
Ficar exausto, deitar-me na cama e saber que vivi

Se conhecesse, não tinha ido
Se recordasse, não tinha voltado
Por isso fui e voltei muitas vezes, não para conhecer nem para recordar
[mas para me cansar e viver.
Chegar ao fim da rua sem saber a cor das paredes das casas
Por nunca ter morado nelas
E aceitar isto como desleixo de passar desinteressado por tudo e por todos
Enquanto a rua desce e estreita
Enquanto se inclina até já não conseguir andar por ela.

Chegar com propósito ao fim por viver muito
Como se chega sem pressa ao fundo da rua
Lugar de espaço e de tempo onde se alarga o meu cansaço.

3 comentários:

Filipe Campos Melo disse...

Talvez a rota seja uma metáfora
E todo o caminho seja ilusão
um estático passo em aparente progressão

E, às tantas,
por tantas enevoadas voltas,
a rua surge em névoa envolta,
como indicio e marca
como princípio e fim

Momento em que nos inclinamos e perguntamos pelo propósito

Todos os jardins têm flores
Todos as flores têm espinhos
Todos os poemas são um lugar
Um verso estreito
perdido em mim


Ler-te é viajar pela bela e intensa emoção que tua poesia sempre guarda

Abraço

Suzete Brainer disse...

Esse teu poema foi escrito no

espaço da excelência... O caminho

das palavras,que atiram setas em

direção as ruas dos sentimentos,

que percorrem por toda a estrada

da vida,porém em belas construções

vindas do coração do poeta...

"Nunca houve outra rua mais

verdadeira e minha

Do que aquela que me sentiu os

passos todos os dias"

Esse teu poema,é um daqueles que

sinto, penso e sinto:Ainda bem que

existe a poesia, que existem poetas

com esse poder tão profundo de nos

emocionar!!

Obrigada por esse momento, amigo!

Ps:Esse poema está na minha lista

(do sentir),um dos mais belo lido

por mim.

Bj.

Maria João Mendes disse...

São recordações onde fui tudo, onde não fui nada,
Onde não consegui chegar ao fim da rua.

O espaço e tempo nunca mudam na nossa memória.
Mas se soubéssemos talvez a rua fosse outra.
Gostei, muito, muito mesmo.

Gosto de te ler.

Beijo