Realidade às avessas

Quando a imperfeição é a realidade, não existe nela a consciência da sua própria imperfeição. Quando, numa realidade imperfeita, surge algo para a aperfeiçoar ou corrigir, parecerá sempre que esse algo é um erro, imperfeito e irreal. 

Eterna partida


Vivo como um desalmado, sem destino
Preso à dúvida e à incerteza de ser eu por onde passe 
Sem retorno, sem a glória de poder partir
Porque partir é a supremacia de ser livre entre iguais

Não me importo quando, pois quando for 
Será a noite e o dia, um só momento
Será clarão no peito alado de um cavalo multicolor
Que me levará, revelando a alma à qual pertenço 

E saberei intimamente que aquela é a minha alma 
Não por ela me pertencer, como qualquer objecto do meu apreço
Mas por ser todo o meu corpo que lhe pertence 
Facto, que nem a minha mente poderá desmentir

Quando assim for, o meu corpo outrora vazio
Será um templo de adoração à natureza e aos homens
E onde quer que esteja, onde quer que chegue na vida

Poderei sempre partir até morrer, e em cada partida 
Erguerei um altar para honra-la em glória e dizer que amei 

E farei tudo de novo

Até que o amor seja o único sentimento
Presente em todos os lugares, em todas as partidas
Constante em todos os altares do meu corpo.
 

19.06.16

enquanto existimos somos tão pouco, somos apenas um pouco mais do que nada, e isso é ser muito...somos o aroma que a nossa essência liberta em comunhão com o mundo...tocamos, sem realmente tocar, somos tocados, sem verdadeiramente o sermos, estendemo-nos fora de nós e do limite do que é físico, chegamos além do que compreendemos e a este alcance, chamamos sentimentos...somos o aprendizado que deixamos, o compêndio final do que fomos e que ficará no tempo, para ser lido quando não precisarmos dos olhos para ver...estamos e permanecemos agarrados à hipótese de existir sem nunca a experimentarmos, sem nunca nos testarmos por dentro...fora ela, a hipótese, somos tudo, tudo o que está fora da consciência da nossa acção e do seu alcance, todos a quem o aroma da nossa essência envolve e nos são perfeitos desconhecidos, o tudo que somos e não entendemos, e que só entenderemos, quando suprimirmos este desejo de ser a qualquer custo que nos cega o coração.

Fidelidade ao pensamento

Percorro em pensamento as minhas memórias reais
Sigo, com alguma dor, mapeando a terra onde mentalmente me vejo crescer
Faço-o sem preconceitos, despido de formas concretas
De normas comuns ao olhar desinteressado do mundo
Liberto de ideais que formatam os homens
Da educação que os engorda nas laterais do corpo

Floresta concreta de sombras caídas
Tão sólidas e profundamente enraizadas nos corações
Que se tornam comuns à cidade e ao meu corpo
São dias abraçados a noites com pouca força nos braços
São homens que desistem de amar outros homens
E deixam cair na sombra do ego o amor ao próximo e ao estranho
Porque amam somente o que é seu

Procuro, vestido de uma esperança propositada
Pessoas incomuns que se interessem por pessoas incomuns
E desejo que este interesse lhes seja comum
Convertendo-as em pessoas comuns
Que construam pontes entre estar vivo e viver
E sejam, no futuro merecido da criança que sou
Arquitectos de amor das paisagens naturais e humanas

Só, entre canteiros de flores e árvores crescidas
Perco-me pensamento plantado quando era luz e nasci
Envelheço temporalmente por fora, banco, jardim, descoberta
Porque a terra é fértil e convida a olhar
E olhar para ela com inocência
É aprender a viver na cidade
E falar dela às pessoas
É escrever poesia com a boca
Mas é apenas e só
O meu ar
O meu sonho
A minha ilusão.

Artificial

Pássaros que voam livres
Jamais contentam-se ficar
Iguais e imóveis como gaiolas
Cárceres de um só lugar

Respirar é para os que vivem
Condição em nada artificial
Ilusão da qual não dependem
Voar, é-lhes pois natural

Presos, lembram flores de plástico
Ilesos sim, mas são pesos mortos
De vida frágil e curta nos corpos

Cadafalsos e carrascos de ferro
Derrotados pairam todos sobre mim
Descida, pássaros que penam, enfim.

Um quarto sem janelas

Porta aberta. A vida é um quarto sem janelas
As paredes cheias de fotos de gente famosa
E de telas de pintores consagrados

A porta aberta. Antecâmara da solidão
Entrei a medo sem saber ao que vinha
Sem saber quem era e o que esperavam de mim

Ao acordar tudo brilha como novo
E o mundo tem gosto de primeira vez
O que aprendi do mundo
Foi com o que me puseram à frente
Com a realidade exposta nas telas e nas fotos que via
E que aceitei como minha
Porque parecia mal fazer perguntas

A vida é um quarto sem janelas
É a solidão de ter dúvidas sobre os enfeites nas paredes
Ter de aceitar fotos e telas como realidade
E ainda assim, viver num quarto com janelas.