Ants

Hoje estou cansado
Dói-me o corpo da realidade compressora sobre a carne
E dói-me a cabeça com o peso destes pensamentos sólidos.
Estou cansado
Não pelo que fiz hoje
Mas pelo que tenho agendado para fazer amanhã.

Se soubesse que ia morrer esta noite
De certo andaria folgado e leve
Por não ter nada para fazer amanhã.
O que me cansa são os dias programados
A repetição no pensamento, antes de acontecer a repetição dos dias
E cansa-me mais a certeza de pensar nisto
Do que tudo o que tenho para fazer e que sei que não farei
E esta certeza aleija-me o corpo como culpa de faltar com a vida.

Quisera o destino que fosse humano
E que tivesse pensamentos sólidos
Sobre qualquer coisa que cheira a céu e a divino
Quando deveria ser formiga, feliz por não pensar repetições
E por andar sempre junto à terra.

Ando farto de ser deus do meu destino por cumprir.

Hoje estou cansado da realidade de não ser formiga.
Estou sentado numa cadeira a ver formigas  
A passarem encarreiradas na labuta automática de não pensarem amanhã
Nem no segundo seguinte, nem na morte a consumir-lhes o tempo.

Estou sentado na cadeira que me persegue para onde eu for
E cansado de fugir dela   
Cansado de ser eu e ter pensamentos sólidos
Agarrado à vida e a coisas vagas como amanhãs com cheiro de morte.
Cansado
De ver formigas.

Momento


E Eu, dividido e disperso no tempo.
Dia por dias, passados e futuros, que me imprimem fotocópia.  
Imagino-me na totalidade, repartido por folhas diversas
Respeito instruções, a vida fora do corpo, de uma gráfica universal
Sigo à risca e metodicamente o manual do sapiens republicado
Onde à nascença foi carimbado o meu nome.
Para amanhã, já me dei à luz
Alimentei-me de rotina para morrer ao fim do dia
Mas hoje, sem a asma que sei que sentirei amanhã pela manhã
Sem o ar de frete que me trazem outros na cara na fila do trânsito
Sem trabalho, sem almoço, sem cigarros, sem mais trabalho a tarde toda
Sem o embrulho no estômago… jindungo no cu de todos os meus eus
Sem luzes agarradas aos faróis na fila de volta a casa
Sem banho, sem jantar, sem bola na TV, sem cama e sem sono 
Hoje, sem nada do que me fará ser eu amanhã.

Delírio passado ou verborreia inútil 
Nasci em partos complicados e criei-me igual todos os dias
E nem num apenas, me mandei a merda e fiquei a dormir.
Noites, insónias suadas
E guilhotinas suaves para encadernar vida em pensamentos.
Lição futura ou cáustica previsibilidade. 
Crio-me de novo, cómodo, e de novo e para o ano inteiro
Amamento-me e cresço nos lençóis surrados da preguiça de os mudar hoje
E eu, tantos
Já sou tantos, antes e depois, que agora, não sei qual sou realmente
Que importa, sou todos, uns iguais aos outros
E de todos, não quero ser nenhum de mim    
Convoquei-os, mesmo àqueles que já esqueci 
Reunião, assembleia-geral, eu com os meus eus reunidos à minha volta
Todos intimados a escrever sobre quem sou.

O tempo não existe
E eu, momento, folhas brancas.
Folhas brancas
Ou uma vida inteira.