Mecânica universal descodificada

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Longe, como algo por dizer, quem sabe amanhã se ouça.
Pedestais partidos, a jornada de lendas entregues à ilusão
Ao objectivo de se projectarem perfeitas, e no entanto nuas

Ténues visões, elas podem recordar, imaginar, quase sentir
São vultos, imagens que desejam, como ninguém, o mundo
No sonho, presas à teia, só porque sabem reproduzir a noite
Multiplicar o dia, mas não sabem esquecer, sem receio.
Eu esqueci-me de tudo, relógios parados na minha voz
Não mais falarei de tempo
E quanta beleza há, apenas, num agora para sempre

Esqueci-me de tudo, mecânica universal descodificada 
Não mais julgarei o mundo
E quanta verdade há, apenas, em ama-lo incondicionalmente
Perto, como algo por fazer, quem sabe amanhã aconteça.
Vultos, imagens que amam como ninguém, somente imagens
Na cela do medo, vivem o sonho e prolongam assim a ilusão.  

A porta dois

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Vulcões de outra luz, magma atrasado no peito do querer
Abraça-me com a voz da tua voz, antes que ame outra cidade

Eu tenho as ardências da porta dois, um caso por resolver
Recursos a rasgarem pele para o tribunal da tua hora
Um caso pacífico de vida
Com resolução oceânica que se adivinha mais à frente
A porta dois, onde acontece algo maior 
Não posso afastar o vidro da janela, nem partir ao meio o tempo
Não posso trazer para dentro a rua
Fico por sair então

A porta dois onde me encontram sempre fora
E fico sem, em troca de cem, sem pensar que existe o que pensar
Encontro-me cá dentro, sempre na porta dois.
Vulcões de outra luz, magma atrasado no querer depois de olhar
Abraça-me com a voz do teu calor, antes que me imagine outra vez
Ainda tenho ardências na porta dois por resolver.

Existencial

A terra húmida sob os pés
Vida que passa descalça
Por ser tão livre como criança
Ou arvore de fruto
Ou erva daninha.

Faço a minha casa nos teus olhos
Uma espécie de amor
Que trago à noite
Com jardins e com vento
Para dormirmos bem.

Sobre a vida
Falo te amanhã
Vamos dormir agora
Abraçados a esta filosofia
Imperfeita como os homens.

Para sempre a vida
Talvez um ciclo
Esqueci uma religião que falava disso
Sintonia e equilíbrio
Para sempre, acredita 

Quando partir ficarei ao teu lado
E levo-te comigo
No aroma de uma essência
Tão básica e natural
Que não existe.


Costa Da Silva 



Nos braços da madrugada

A noite cai lenta e macia
Sobre a tapada
Cobrindo o brilho do dia
Assim, calada…

Calada

Seduz a curva da estrada
Que à frente fluía  
Tão longa, tão fechada
Assim, morria… 

Morria

Na acidental filantropia 
De um pinheiro
Onde a vida se escondia  
Assim, calada…

Calada

Não há vidros partidos
Nem lágrimas
Nem gritos sofridos
Na face de uma folha caída
Seca e morta à beira da estrada

Tão calada…

A noite caía lenta e macia
Sobre a tapada
Cobrindo o brilho do dia
Assim, calada…

E morria
E gritava
E chorava
Nos braços da madrugada.

Só isto importava
Mais nada…

Mais nada.


Costa Da Silva

Ninguém dá por nada

O pólen da nossa flor
Cai dos dedos
Enquanto o sol se deita
No precipício de nós
E morremos gelados
Entre tempos relógios
Que separam homens.

Vermelho sangue
Corta-se a carne.
Enche-se o copo
Bebe-se até ao fim.

Letras cansadas.
Arde âmbar incenso  
No fogo da manhã
E hoje é o nosso ar
Espalhado nesta sala
Que servirá os mortos.

Fecha-se a carta
Quem escreveu, escreveu
Vira-se a página
E sente-se a vibração na pele.

Uma rosa entre palmas
A Amália canta baixinho

E ninguém dá por nada
Bis
Bis


Costa Da Silva

Morrem no peito Legiões

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No ciclo eterno das estações, em cada nova reunião
A percepção exacta da palavra, do gesto
Como prolongamento, como extensão da âncora

Fundeada no longínquo mar dos meus ancestrais.

Uma nítida dimensão onde adormecem os sentidos
A claridade dos dias, a luminosidade das noites
Confinadas aos cantos desta dor

Em demorados rituais, em prolongadas penitências.
À luz de outras existências, noutras sangrentas arenas
Tolhidos movimentos, envoltos, por lúgubre manto
Qual pesada lacerna    

Na demanda que cruza este avito tempo 
Desfaço a alma, contorço o corpo
Esfolo dos pés a pele, em passos sem cáliga.
Percorro o vazio da antecâmara até à boca

Revela-se agora um acústico círculo de vozes em coro
Onde se faz murmúrio e do murmúrio a palavra
E da palavra o cântico, rasgado por gritos   

A plena evocação, à alma de todos os corpos
À loucura dos massacres

Ao delírio de todas as dores, num único momento.

Caravelas azuis céu adentro

Desconheço as certezas que me atraem ao desconhecido.
Um movimento causa efeito no brilho desta dúvida circular
Não tenho esperança de me encontrar nas perguntas que guardo
E guardo-as religiosamente como segredos esquecidos no tempo.

Desacreditei teorias sobre a dor sem ter sofrido.
Vou em procissão levar toalhas quentes à angústia que me consome
E pelo caminho, idealizar a morte por baixo da terra
Por não acompanhar a gravidez das estrelas todos os dias 
Nem assistir ao seu parto anunciado com ardor fora dos olhos.

Esqueci-me de acreditar

Caravelas azuis céu adentro por dois mil anos
Tenho esperado o meu nascer para começar.
Na origem a indiferença onde me guardo sem ambições
Cai o lorpa na arcada por um abraço que ninguém me deu
Cresci e morei sempre à porta sem entrar
Com medo de pisar o mesmo chão, conhecer o padrão e ficar

Esqueçam-me todos, todos os dias em que não voltei
Esqueçam-me os lamentos e as ilusões que emprestei ao mundo
E afastem-me de vez quando chegar a falar de amor.
Esqueci-me de acreditar

Caravelas azuis céu adentro por dois mil anos
Elevam-se adagas e escudos pela morte de um imperador.
Desenhei um rio com margens e com corrente
Porque só quero uma vista para o Nilo, na tarde da minha derrota.

Qualquer coisa sem propósito

A rua desce estreita até ao fundo do meu cansaço.
Vai-se estreitando para o fim, como qualquer coisa sem propósito
Que estranhamente, de todas as vezes que passei por ela
Nunca consegui explicar.

Nunca houve outra rua mais verdadeira e minha
Do que aquela que me sentiu os passos todos os dias
E da mesma maneira, nunca houve desses dias, somente um
Em que ela soubesse quem eu era e me conhecesse por andar nela.

É a rua onde cresci e me vi passar por mim
Ao perto e ao longe
E me deixou marcas na pele e na alma
Por cair nela muitas vezes. 

É a rua onde andei como desalmado com camisa bem passada
Como inconsciente com sapatos novos a pisar em tudo
Onde andei vestido de mim, como pessoa inteligente sem futuro
E hoje, é a rua que se inclina para falar de tempo e de espaço
Sem falar do que sou, sem marca nem memória que de mim lembre.
Corrida até ao jardim sem respirar
Ir e voltar a deixar marcas pelo passeio e entrar em casa.
Universos percorridos até à extinção da vontade de ir
Ficar exausto, deitar-me na cama e saber que vivi

Se conhecesse, não tinha ido
Se recordasse, não tinha voltado
Por isso fui e voltei muitas vezes, não para conhecer nem para recordar
[mas para me cansar e viver.
Chegar ao fim da rua sem saber a cor das paredes das casas
Por nunca ter morado nelas
E aceitar isto como desleixo de passar desinteressado por tudo e por todos
Enquanto a rua desce e estreita
Enquanto se inclina até já não conseguir andar por ela.

Chegar com propósito ao fim por viver muito
Como se chega sem pressa ao fundo da rua
Lugar de espaço e de tempo onde se alarga o meu cansaço.

À luz de uma lua de Saturno

Um universo de palavras indecentes
Molda a matriz que se repete
Que se renova todos os dias
E troca o fim pelo princípio.

[…]

Se nasci na origem
Foi para morrer no fim de tudo
À luz de uma lua de Saturno  
Por viver com ganas de ter realidades em Vénus
Sem véus nem pudores e sentir no peito
Como um homem que ama uma puta e é feliz

Materializar vida, bêbado em cacho
Transformar sangue em vinho
E viver, todos os dias, desalmado como bastardo
Para chegar lá nem que seja só
Mas, a olhar de frente para tudo, sem medo de ver.

A água cai e fertiliza a terra

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A água cai e fertiliza a terra sem explicar como nem porquê
Assim nasce uma vida enquanto realizo o mundo inteiro
E sinto na planta dos pés esta verdade universal

Nos primeiros passos que dou a descobri o passar das horas
A imaginar o passar dos dias e a inventar o passar dos anos
Vivendo breves metamorfoses
Numa directa existência rumo a um vazio memorável

Do nada nascem poemas
E nascem jardins entre prisões
Da liberdade nasce uma brisa que suave me sopra o corpo.

Vivo breves metamorfoses sem me conhecer
Vivo outra vez
Mas estranho-me sempre nas úlceras do tempo.

A água cai e fertiliza a terra sem explicar como nem porquê
Nascem jardins entre prisões enquanto realizo uma dor.
Quero-me através do tempo como se fosse hoje falar de mim
Para não me esquecer que vivi.

Às portas do templo abate-se a névoa

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Às portas do templo abate-se a névoa sobre todos os degraus
No receio de cair, de precipitar os passos no vazio silencioso da dor
Chamo-te, procuro-te pelos pátios desertos
Pelos becos mais escuros do meu pensamento

Estendo a mão mas não te encontro

Não estás, já não preenches a metade que te pertence por inteiro.
As portas do templo estão agora trancadas, selando o passado
A névoa, essa, continua a pairar sobre todos os versos que escrevo

Sem chão, sem horizonte, sem vento que me carregue.

Quando a brisa vem serena

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Quando a brisa vem serena, levanta o véu como se nada fosse
As cortinas ondulam ao primeiro vento da manhã
Descobrem os primeiros raios de sol do dia em que acordei

Desperto a dizer do dia e do sol para sair porta fora e ter vontade
Caminhar pelas ruas e falar com as pessoas
Com a suavidade com que a cortina ondula e diz do vento.

Assim amanhecem novos mundos aos primeiros raios de sol
Lugares conscientes onde ninguém é plástico nem betão

Assim é o universo como o imaginei ao sair de casa
Caminhar pelas ruas e falar com as pessoas
Sementes da semente universal.

Lugares conscientes, jardins com espaço por não terem paredes.

O homem sentia letras nos dedos

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O homem sentia letras nos dedos
Escrevia o sonho
Voava.

O homem sentia vozes na boca
Vivia a palavra
Ele escutava

Pensava o mar dentro de um copo
O homem sentia
Lembrava a terra da qual se perdeu
E sofria.

O homem morreu.

A mulher chorava vestida de negro
Emprestava a lágrima
Ela amava

O homem sentia letras nos dedos.
Amou
Sonhou
E morreu

O homem assim se escreveu.

A porta nova da casa velha

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Todo o espaço que há dentro da minha casa
É o espaço onde nasci, cresci e onde irei morrer
Não pode ser, nem o vejo, de outra maneira.

Tenho perdido algum tempo a arranjar o telhado
A pintar as paredes e a mudar a porta e as janelas
E este tempo tem-me feito falta
Para conhecer o espaço que há dentro de casa

A casa que vai, ao longo dos anos, envelhecendo.

Embora o espaço que há dentro da minha casa
Não seja um espaço grande demais, preencho-o assim
Com o que sou e com o que o mundo me oferece

E é por esta razão, elementar como só a vida pode ser
Que a porta nova da casa velha está sempre aberta.

Podia chover à tua porta

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Nesta cimeira de nuvens, podia chover à tua porta

Inexplicável, o silêncio avança em nós devagar
Suspende lentamente as mãos despidas, de lágrimas
Como por magia, revela um adeus entre fios de luar

E balança, à tua porta, balança à tua porta, balança

Estranho este constante sentimento de perda.
São nuvens sem chuva preenchendo o céu de cinzento
Vêm vazias, mostram-se e frias afastam-se

Como todas as despedidas sem palavras.

Cabem entre os homens oceanos inteiros

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Cabem entre os homens oceanos inteiros de indiferença
Um mar imenso, saturado de sal, que tudo corrói
Onde, em silêncio, as palavras morrem afogadas
[dentro dos corpos.

Quando gélidas são as lágrimas dos homens
Negros serão os tempos do mundo
Negra é a sombra da tormenta que escurece os dias
[que dobra as noites

Ao sabor da solidão, não se alcançam continentes
[nem se alargam horizontes.
Quem irá lançar a semente na terra e cultivar a palavra?

Quem, quebrando o seu espelho de vontades
Salvará os náufragos deste tempo, quem terá essa coragem?

A palavra que muda o mundo nasce dentro dos homens
Cresce por um sorriso, cruza oceanos num olhar e aproxima pessoas.
Todos os homens pertencem à terra e a seu tempo
Todos os homens pertencerão ao pó.

Quando o manto de horas negras cobre a luz

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Quando o manto de horas negras cobre a luz de todos os lugares
Não restam sonhos inocentes, nem sentimentos sinceros
Dentro dos corpos embriagados, vestidos de vício

Sem sentir, vagueiam sem sentido

Rasgando noites imperfeitas cobertas com véus transparentes
Onde atrás de cada porta o mistério toma a forma de sorrisos
As curvas assumem-se suaves, como idílicos paraísos
Na terra das sensações pronta a conquistar

É o princípio da viagem ao fundo do ser

Quantos corpos largados, dias, semanas, meses por amar?
Tantos brilhos transformados na solidão sob o luar
Tantos corpos enganados por promessas ao por do sol
Vencidos, sem encanto, pela força indiferente do destino.

Quando este manto de horas negras revelar o infinito céu estrelado
Cobrindo a vontade de metade do mundo
Mostrará a sua nocturna imensidão, onde cada ponto brilhante é vida
É sonho, por mais ínfimo que seja é luz.

Sim, pode ser diferente.

Temporal poema porque chovem as manhãs

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Temporal poema porque chovem as manhãs.
Ainda perduras no fogo onde forjei o teu corpo
Talhei a jóia que te fez mulher aos meus olhos.

Esperei atrás do tempo, numa madrugada de intenções
Inventando formas suaves de abraçarmos a noite
Imaginando as feições deste sonho avermelhado

Assim, afastei os barcos, embrulhei os lagos
Desenhei de novo a paisagem que trazes no cabelo
E fiquei aqui, sentado, esperando o sol nascer

Mas neste alongar das horas, esqueci o traço
E pálida torna-se a tela onde te pintei desejo
Como aguarela sem cor, como uma boca sem beijo.

Talhei a jóia que te fez mulher aos meus olhos
Temporal poema porque chovem as manhãs
Sobre este fogo que ainda arde.